Quando o mês de maio chega e o frio se intensifica, uma visitante assídua aparece nas águas do litoral catarinense: a tainha. Com a pesca artesanal, o peixe se mantém símbolo da tradição, mas ainda é subexplorado comercialmente. Pesquisas desenvolvidas na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), no entanto, podem contribuir para o nascimento de alternativas economicamente viáveis, capazes de garantir a oferta da tainha durante o ano inteiro e agregar valor à sua produção.
Coleta de sêmen para fecundação em cativeiro. Crédito: Acervo Lapmar
O Laboratório de Piscicultura Marinha (Lapmar) foi o primeiro do mundo a conseguir reproduzir todo o ciclo de vida da espécie Mugil liza em cativeiro. O projeto teve início em 2014, quando 14 exemplares adultos selvagens (quatro fêmeas e dez machos) foram capturados em Laguna, no Sul do estado, e transportados para a unidade de pesquisa da UFSC, instalada em Florianópolis.
Esse primeiro lote de reprodutores foi mantido em um tanque de 12 m3, onde as fêmeas receberam indução hormonal para liberação dos ovos; enquanto os machos liberaram sêmen quando submetidos a massagens abdominais. A fecundação dessa espécie ocorre na água e, no estudo pioneiro, a eclosão das primeiras larvas foi registrada 48 horas após a desova. Por cinco anos, todas as desovas realizadas no Lapmar utilizaram os exemplares selvagens. Somente no fim de 2019, alguns meses antes da pandemia, a experiência foi consumada com exemplares da primeira geração nascida em cativeiro, chamada F1.
A principal contribuição do trabalho concebido na UFSC foi o domínio do ciclo de vida da espécie. Com o desenvolvimento integral dessa geração no laboratório, os pesquisadores conseguiram acompanhar o processo de maturação sexual e constataram que os machos apresentavam espermatozoides viáveis por volta dos 11 meses de idade, quando atingiam em torno de 24 a 25 cm de comprimento. As fêmeas, por sua vez, estavam aptas à reprodução somente aos três anos, com cerca de 40 cm.
A pesquisa demonstrou regularidade nos índices de desova e na qualidade dos ovos, permitindo um grande avanço no controle da reprodução da tainha fora do seu habitat natural. O domínio desta técnica torna possível produzir o peixe todos os meses do ano e escalonar sua produção. Neste mês de maio, a equipe do Lapmar iniciou o trabalho de preparação para a desova da segunda geração (F2).
O engenheiro de aquicultura Caio França Magnotti, supervisor do Laboratório de Piscicultura Marinha, começou a trabalhar na UFSC em 2013 e acompanhou todas as pesquisas desenvolvidas na instituição sobre a espécie desde então. Para ele, ainda que seja complexo garantir que os peixes fiquem aptos à desova no ambiente do laboratório, a parte mais crítica do processo são os primeiros 15 dias após a eclosão do ovo. “É uma fase praticamente microscópica. Você quase não vê a larva. Você não pode encostar nela, que ela morre. Então, qualquer deslize, uma temperatura diferente, um choque mecânico ou um choque de luz, como acender e apagar a luz, pode causar a morte. É muito delicado”, pondera.
A rainha das águas no inverno
Tainha é a designação de vários peixes da família dos mugilídeos, que engloba mais de 70 espécies, distribuídas em 20 gêneros. No Brasil, muitas espécies são conhecidas também pelos nomes de parati, saúna, curimã, tapiara, targana, cambira, muge, fataça, entre outros.
Em média, a tainha Mugil liza pesa de 2 a 4 kg e mede aproximadamente 50 cm. Apresenta um corpo robusto, alongado e fusiforme (com as extremidades mais estreitas que o centro), com a cabeça pontiaguda e achatada, a boca pequena, e os olhos grandes e amarelados – parcialmente recobertos por uma pele (pálpebra adiposa) muito desenvolvida nos adultos.
São peixes com alimentação diurna e, essencialmente, herbívoros e detritívoros. Eles se alimentam de algas, zooplânctons e detritos. “Resumidamente, eles comem qualquer coisa. A tainha tem o estômago muito muscular, bem curtinho e pequeno, e o intestino bem longo. Assim, é um peixe adaptado para comer restos vegetais, tudo o que tiver no fundo de uma lagoa, de um estuário. No laboratório dá pra ver elas fazendo isso: vão ao fundo, pegam a matéria orgânica, mastigam e soltam. Elas ficam o dia inteiro comendo”, informa o supervisor do Lapmar, Caio Magnotti. (Caio Magnotti é engenheiro de aquicultura e cursou da graduação ao doutorado na UFSC. Crédito: Maykon Oliveira)
Com a chegada do frio, a tainha começa a aparecer na costa de Santa Catarina. É neste momento que os pescadores artesanais se preparam para a captura dos cardumes, dando início à temporada das safras, que vai de maio até julho. Por causa disso, é uma espécie considerada muito vulnerável à atividade pesqueira, uma vez que sua safra coincide com seu período reprodutivo.
A Federação dos Pescadores do Estado de Santa Catarina (Fepesc) realiza a coleta de dados para levantamento das safras há mais de uma década. Segundo a entidade, foram capturadas 1.800 toneladas de tainha em 2021. Para este ano, a previsão é que sejam registradas 2.000 toneladas. “Tudo indica que vamos cumprir essa meta, os indicativos estão bons para este ano”, afirma o presidente da Federação, Ivo da Silva.
O governo brasileiro adota, desde 2018, o sistema de cotas para pesca da tainha. De acordo com a Fepesc, em 2022, estão credenciadas 95 embarcações para pesca artesanal e autorizadas nove embarcações para pesca industrial. Apesar de alguns avanços, o presidente da entidade critica a falta de diálogo e de investimentos no setor. “A pesca artesanal apresenta uma realidade preocupante para os pescadores e suas famílias. A situação crítica ao longo da costa catarinense se agrava com falta de investimento do setor público e apoio social. A regulamentação é editada em Brasília, sem nenhum estudo técnico e socioeconômico”, critica Ivo.
Já o supervisor do Laboratório de Piscicultura da UFSC, Caio Magnotti, avalia que o estado ainda não explora os nichos de mercado disponíveis. “É sempre a mesma coisa: o pescador vendendo a tainha inteira; a peixaria vendendo ova; e o restaurante vendendo tainha frita. Então, se você for ver, na economia de um estado, no PIB, não é um negócio interessante. Tivemos uma forte frente fria há uns anos e uma supersafra de tainha, e o mercado não absorveu isso: tinha tainha sendo vendida a R$ 1”, lembra.
A tainha é pop!
Não dá pra negar, a tainha é popular: já foi por diversas vezes cardápio do Restaurante Universitário (RU), inspira reggae, estampa camisetas, é tema de sarau e, claro, gera memes.
A verdade é que a tainha é uma figura muito conhecida – e prestigiada – na história do litoral catarinense, especialmente nas regiões de colonização açoriana.
Fonte: https://noticias.ufsc.br/
Maykon Olveira|Jornalista – Agência de Comunicação | UFSC
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