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Criação de camarão impulsiona desmate de 50% dos mangues no País

Fonte: Estadão/João Ker - Fotos:Fabio de Oliveira/Estadão


A decisão do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) de derrubar resoluções que protegiam manguezais e delimitavam a área permitida para a sua exploração pode ampliar um problema que vem avançando: as florestas de mangue já tiveram até 50% de sua área total no Brasil desmatada pela criação de camarões em cativeiro. As resoluções foram restabelecidas pela Justiça Federal na terça-feira, 29, mas o debate sobre o tema deve prosseguir.


Definidos como “políticas públicas que identificam e orientam as ações prioritárias para combater as ameaças que põem em risco populações de espécies e os ambientes naturais e assim protegê-los”, os PAN protegem mais de 60 espécies brasileiras. O PAN Manguezal, entretanto, cuja vigência se estendia até janeiro deste ano, foi o primeiro criado para a proteção de um bioma inteiro.


“Os mangues estão sob um tipo de proteção muito fraca, que é um tipo de categoria de conservação que não tem efeito prático”, explica o ecólogo Alexander Ferreira, pós-doutor em Ciências Marinhas Tropicais. Especializado na conservação e restauração desses biomas, ele explica que o Código Florestal de 2012 prejudicou os manguezais, abrindo a possibilidade para a ocupação de pelo menos 600 mil hectares a nível nacional, ainda que eles sejam Áreas de Preservação Permanente (APPs).


A obrigação de preservação e reflorestamento das APPs cabem ao proprietário do terreno e sua exploração, em regra, só é permitida nos casos de utilidade pública, de interesse social ou de baixo impacto ambiental. Ainda assim, atendendo as exigências legais e mediante licença ambiental dos órgãos oficiais. Desde 1965, elas são regidas pelo Código Florestal.


A proteção dos manguezais frente à carcinicultura, entretanto, está emaranhada em uma rede jurídica entre os entes municipais, estaduais e federais. O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) negou ter responsabilidade pela fiscalização de manguezais, mesmo que seja de competência do órgão a emissão do Cadastro Técnico Federal de Atividades Potencialmente Poluidoras e Utilizadoras de Recursos Ambientais (CTF/APP).


Em abril deste ano, o Ibama publicou uma nova Instrução Normativa (IN n° 9/2020), que passou a licenciar e isentar da Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental (TCFA) a “criação intensiva de animais”. “A Constituição Federal diz que a fiscalização se dá pelos três entes federados. Já a Lei Complementar 140 distribuiu essas competências com a regra geral de que quem licencia é quem fiscaliza”, explica Marise Duarte, professora de Direito Público da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

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Em 2013, um levantamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) apontou que o Brasil tinha uma área total de 1.389.960 hectares de manguezais. Ao todo, o País concentra 9,8% desse bioma em todo o mundo e abriga a maior parte da América Latina (59,8%). No mesmo ano, entretanto, a carcinicultura já havia se expandido por 30.475 hectares por aqui e foi classificada pelo estudo como “uma das principais atividades econômicas encontradas nas zonas de ocorrência de manguezais do Brasil”.


De acordo com o Atlas dos Manguezais do Brasil, publicado em 2018 pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), 99,9% de todas as fazendas de carcinicultura do País estão inseridas em alguma UC. O mesmo documento afirma que a criação de camarão é a responsável pela destruição global de 38 a 50% dos manguezais brasileiros.


“Desde a minha primeira viagem, e em todas que fiz pela costa brasileira, o que mais me espantou foi a degradação, o conflito social, as ameaças e o silêncio causados pela carcinicultura”, afirma o jornalista João Lara Mesquita.


Em 2005, ele teve seu primeiro contato com a atividade e produziu um documentário sobre o tema. “A especulação imobiliária, a poluição e o descarte do lixo eram coisas sabidas. Mas quase ninguém fala sobre esse assunto e o que há por trás de uma degradação desse tamanho.”


Em 2008, a então ministra do Meio Ambiente Marina Silva tentou suspender os atos de concessão das Unidades de Conservação (UCs) pelo governo federal, estabelecendo um prazo para a retirada das fazendas de carcinicultura dos manguezais, que então ganharam mais um instrumento de proteção legal. A medida, entretanto, foi revogada mais tarde pelo novo Código Florestal, que flexibilizou não só as diretrizes para a exploração de APAs, mas também concedeu um “perdão jurídico” a todas as fazendas de camarão que estavam localizadas em manguezais até 2008.


“A pressão da bancada foi imensa e eles conseguiram aprovar que em determinados Estados, chegue a 30 ou 40% o total de apicuns onde a ocupação é permitida”, explica Jeovah Meirelles, professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC) e dos programas de pós-graduação em Geografia e em Desenvolvimento e Meio Ambiente (PRODEMA).


“Quem estava em área consolidada como APA ganhou permissão para ficar ali. Por isso que a gente o chamava de Código Anti-florestal, porque flexibilizou muito o original de 1965 e foi um retrocesso”, observa Marjorie Madruga, que atua na Procuradoria Ambiental do Rio Grande do Norte desde 2003.


Ela explica como a medida atingiu especialmente os apicuns e salgados, que deixaram de ser reconhecidos como parte dos manguezais e ganharam permissão para serem ocupados pela criação de camarão. Com a recente derrubada das resoluções do Conama, a procuradora enxerga um clima de “insegurança jurídica muito grande”, “judicialização imensa” e limites para a exploração de APPs “em aberto”.


"Agora, cada Estado ou órgão pode normatizar um tamanho próprio de exploração e dizer onde começa e termina a área de restinga, saindo da objetividade local e entrando na subjetividade política”, explica. Além de abrir caminho para a carcinicultura, isso também permitiria o aumento da especulação imobiliária no litoral, com a construção de resorts e a invasão de trechos que, previamente, estariam protegidos por lei.


Não bastasse a flexibilização para a ocupação de apicuns e salgados, o próximo passo tomado pela Associação Brasileira dos Criadores de Camarão (ABCC) foi o reconhecimento da carcinicultura como atividade agrossilvipastoril, “destinada ao uso econômico, à preservação, e à conservação dos recursos naturais renováveis”. Classificada assim, ela ganharia a permissão de se instalar em manguezais e qualquer outra APP, uma tentativa que começou durante a reformulação do Código Florestal, mas foi barrada.


Marjorie conta que após o órgão amargar duas derrotas, nas 1ª e 2ª instâncias, para que essa permissão fosse concedida através da Justiça, houve lobby para um projeto de lei estadual apresentado pelo deputado Gustavo Carvalho (PROS) e aprovado por unanimidade. Nascia assim a Lei Estadual Nº 9978 Governador Cortez Pereira.


“No Rio Grande do Norte, a carcinicultura pode destruir o manguezal para se instalar. É um processo ambiental gigantesco que você não vê acontecer em outros Estados”, observa Marjorie. Desde 2019, o Ministério Público Estadual do RN ajuizou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade contra a Lei Cortez Pereira.


Lucro alto a baixo custo


A carcinicultura está associada ao desmatamento de manguezais desde que chegou ao Brasil, desembarcando no Rio Grande do Norte ao final da década de 1970 pelas mãos de José Cortez Pereira de Araújo. À época, o governador lançou o “Projeto Camarão” como uma substituição à extração do sal, em declínio na região, aproveitando a experiência de países da Ásia e a produção que despontava no Equador.


Uma série de fatores faz com que a atividade tenha encontrado no litoral nordestino um espaço para a sua franca expansão, mas os principais são as altas temperaturas da região e o “baixo custo de investimento” oferecido pelos manguezais. Enquanto a sua posição geográfica permite condições climáticas perfeitas para a carcinicultura e rende até três ciclos ao ano, os mangues oferecem um abastecimento natural de águas salgadas.


Não à toa, quase toda a produção brasileira de camarão está no Nordeste (99,4%), de acordo com a Pesquisa da Pecuária Municipal, divulgada em setembro de 2019 pelo IBGE. Apenas o Rio Grande do Norte e o Ceará são responsáveis por 71,7% desse total, que chegou a 90 mil toneladas e rendeu lucro de R$ 1,1 bilhão, perdendo apenas para o comércio de peixes na aquicultura nacional. Ao mesmo tempo, o Atlas dos Manguezais estima que pelo menos 40% do bioma encontrado na região já foi suprimida desde o início do século passado.


Hoje, de acordo com a Secretaria de Aquicultura e Pesca, do Ministério do Meio Ambiente, existem 1.014 fazendas de criação de camarão no Brasil com registro de pesca. Mas os dados podem ser ainda maiores. A SAP afirma que, apenas no Rio Grande do Norte, existem 159 fazendas registradas. Já um levantamento feito pelo Estado, com dados da Associação Norte-rio-grandense de Criadores de Camarão (ANCC), aponta que haviam 480 fazendas de camarão por lá no ano passado.


Pesquisadores do Labomar e da UFC estimam que, para cada hectare de manguezal desmatado, seja necessário um investimento de até U$ 4,6 milhões (R$ 25,7 milhões, na cotação atual) para que a vegetação seja recuperada. “Nem todo projeto de carcinicultura é insustentável, ele se torna isso quando ocupa e desmata um manguezal, quando ocupa APP, e aí se torna uma atividade danosa ao meio ambiente”, observa Marjorie.


Dentre as muitas funções ambientais atribuídas aos mangues, estão o controle de marés, a irrigação do solo e o sustento de comunidades ribeirinhas que utilizam a área para a pesca artesanal e dependem diretamente das espécies de peixes e caranguejos encontrados ali. “O mangue é um sistema que não se recupera. Se você o destruiu e ainda assim encerra as atividades, às vezes se passam 30 anos e não adianta. Uma salina no Ceará fechou nos anos 1980 e ainda não cresceu mangue ali”, observa Ferreira. “Ainda há o prejuízo às comunidades tradicionais. Você substitui um ecossistema nativo e troca por um ambiente restrito a uma pessoa só.”


“No Equador, 75% dos manguezais foram destruídos pela carcinicultura, mais inúmeros casos de assassinatos e conflitos por terras. Nós importamos essa mesma metodologia”, explica Meirelles, admitindo que, hoje, a indústria “não é tão destrutiva quanto antes”, mas continua com os mesmos embates ambientais.


Futuro incerto

Um documento disponibilizado pelo Banco do Nordeste do Brasil (BNB), em agosto deste ano, aponta que o Rio Grande do Norte e o Ceará têm despontado no contexto nacional como principais produtores de camarão e, desde 2002, “passaram a se integrar com maior ênfase às cadeias globais”. De acordo com o BNB, já foram aplicados R$ 657, 41 milhões em carcinicultura desde o ano 2000, através dos recursos do Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste (FNE), em 1.245 operações de crédito.


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