LITORAL DA COREIA DO SUL – Os danificados “barcos-fantasma” de madeira ficam à deriva no mar do Japão durante meses. Sua única carga são os cadáveres de pescadores norte-coreanos famintos, cujos corpos foram reduzidos a esqueletos. No ano passado, mais de 150 dessas macabras embarcações foram arrastadas à costa japonesa, onde apareceram mais de 500 nos últimos cinco anos.
Durante anos, esse horripilante fenômeno intrigou a polícia japonesa, cuja melhor hipótese era de que as mudanças climáticas levaram a população de lulas a uma maior distância da Coreia do Norte, forçando os pescadores desesperados do país a atingir distâncias perigosas do litoral, onde eles ficam à deriva e morrem em consequência da exposição prolongada.
Contudo, uma investigação conduzida por uma equipe internacional de pesquisadores acadêmicos, por Ian Urbina – antigo repórter investigativo do New York Times, agora diretor do The Outlaw Ocean Project – e pela Global Fishing Watch – uma organização sem fins lucrativos especialista em rastrear atividades ilegais em alto-mar, através do uso de tecnologia de satélite e inteligência artificial – revelou, com base em novos dados de satélite, uma explicação tida pelos pesquisadores marinhos como mais plausível: a China está enviando uma frota previamente invisível de barcos industriais para pescar ilegalmente em território da Coreia do Norte, deslocando violentamente barcos norte-coreanos menores e encabeçando um declínio de mais de 70% da população outrora abundante de lulas.
As embarcações chinesas – quase 800 em 2019 – parecem violar sanções da Organização das Nações Unidas (ONU) que proíbem embarcações de pesca estrangeiras em águas norte-coreanas. Essas sanções, impostas em 2017 como uma reação aos testes nucleares do país, pretendiam punir a Coreia do Norte ao não permitir que vendesse direitos de pesca em seu território em troca de moeda estrangeira de alto valor.
Pescadores de lula da Coreia do Sul no mar do Japão em 2017 Foto: The Outlaw Ocean Music Project
“Esse é o maior caso conhecido de pescaria ilegal cometido por uma única frota industrial operando em águas estrangeiras”, disse Jaeyoon Park, cientista de dados do Global Fishing Watch.
A China é membro do Conselho de Segurança da ONU, que assinou, em caráter não anônimo, as sanções recentes sobre a Coreia do Norte. No entanto, a flotilha que viola a proibição compõe cerca de um terço de toda a frota de pesca em águas distantes da China, de acordo com o Global Fishing Watch.
Quando apresentado aos achados da investigação, o ministro das Relações Exteriores chinês disse que “a China tem, consistente e conscientemente, reforçado as resoluções do Conselho de Segurança sobre a Coreia do Norte”. O ministro adicionou que a China tem “consistentemente punido” a pesca ilegal.
Em março, dois países apresentaram, em um relatório anônimo para as Nações Unidas, queixas às violações da China a essas sanções e apresentaram provas desses crimes, incluindo uma imagem de satélite dos navios chineses pescando em águas norte-coreanas e testemunho da tripulação de pesca chinesa que disse ter avisado ao governo de seus planos de pescar em território norte-coreano.
Barcos de arrasto chineses ancoradosno porto da ilha de Ulleung, nas água da Coreia do Sul Foto: The Outlaw Ocean Music Project
Os pesqueiros do mar do Japão, conhecido nas Coreias como mar do Leste, estão localizados entre as Coreias, o Japão e a Rússia e incluem algumas das águas mais disputadas e pouco monitoradas do mundo. Até agora, a enorme presença de barcos chineses nessa área ficou, em grande parte, escondida, porque seus capitães rotineiramente desligavam os transponders, ficando invisíveis às autoridades em terra, o que, sob a maioria das condições, é ilegal.
No entanto, a Global Fishing Watch e seus pesquisadores parceiros conseguiram documentar essas embarcações, usando vários tipos de tecnologia de satélite, incluindo uma que reconhece luzes brilhantes à noite. Muitos barcos para pesca de lula usam luzes extremamente fortes para atrair a presa para mais perto da superfície do oceano, capturando-a com mais facilidade. Os chineses também usam algo chamado “pesca de parelha", que consiste em dois barcos navegando lado a lado com uma rede amarrada entre eles que varre os mares. Eles são mais fáceis de rastrear por satélite, pois viajam juntos.
Tantos norte-coreanos já desapareceram no mar nos últimos anos que algumas cidades portuárias da Coreia do Norte, incluindo Chongjin ao longo da costa leste do país, são chamadas agora de “vilas viúvas”. No ano passado, mais de cinquenta corpos de norte-coreanos foram levados pela água para praias do Japão, de acordo com a Guarda Costeira japonesa.
O aumento sombrio desses barcos-fantasma que chegam às praias alimentou a paranoia e inflamou a tensa história entre o Japão e a Coreia do Norte, levando alguns no Japão a especular que os barcos-fantasma transportam espiões, ladrões e talvez até portadores de doenças contagiosas, usados como armas.
“Se um navio coreano se perdesse, ele estaria destruído quando chegasse em nossas praias”, disse Kazuhiro Araki, CEO da Abduction Research Organization [Organização de Pesquisa sobre Abduções], um grupo que estuda a história de centenas de cidadãos japoneses supostamente sequestrados pela Coreia do Norte nos anos de 1970 e 1980. “Mas alguns barcos chegaram aqui intactos, sem homens a bordo, e é possível que eles sejam espiões que conseguiram chegar à terra.”
Barcos de arrasto chineses em direção a áreas de pesca no mar do Japão em outubro de 2016 Foto: The Outlaw Ocean Music Project
A explicação mais provável, no entanto, é que esses coreanos são apenas pescadores malpreparados, arriscando-se desesperadamente e se aventurando a uma grande distância da costa, de acordo com Jungsam Lee, um estudioso do Instituto Marítimo da Coreia e um dos autores da nova pesquisa do Global Fishing Watch. Após serem atingidos por tufões ou ficarem à deriva devido a uma falha no motor, eles são carregados pela corrente Tsushima que corre em sentido nordeste para o litoral oeste do Japão, ele disse.
Cobertos com uma crosta de conchas e algas, esses barcos de madeira de fundo chato têm de quatro a seis metros de comprimento e geralmente levam de cinco a dez homens. Não têm banheiros ou camas, apenas pequenas jarras de água limpa, redes de pesca e guincho, de acordo com relatórios investigativos da Guarda Costeira japonesa. Eles hasteiam bandeiras desgastadas da Coreia do Norte e muitas vezes os cascos são decorados com números pintados ou marcações em caracteres coreanos, incluindo “Departamento de Segurança do Estado” e “Exército Popular da Coreia”.
Todos os corpos encontrados a bordo desses barcos-fantasma aparentam ser masculinos, embora alguns estivessem tão decompostos que investigadores japoneses tiveram dificuldade de comprovar com certeza. Tensões políticas entre os países e uma falta de transparência no chamado “Reino Eremita” da Coreia do Norte dificultam obter uma explicação oficial para o fenômeno.
Em 2004, a China assinou um acordo multimilionário de licença de pesca com a Coreia do Norte, o que levou a um aumento drástico no número de barcos chineses em águas norte-coreanas. Mas sanções internacionais impostas em 2017, em resposta aos lançamentos intercontinentais de mísseis balísticos e aos testes nucleares da Coreia do Norte, pretendiam espremer fontes-chave da renda norte-coreana.
Benfeitor de longa data da Coreia do Norte, a China assinou as sanções após ser pressionada pelos Estados Unidos e, em agosto de 2017, o ministro do Comércio chinês reiterou, publicamente, o compromisso do seu governo ao reforçar essas novas regras.
Navios-lula localizados no porto da ilha de Ulleung nas águas da Coreia do Sul Foto: The Outlaw Ocean Music Project
Frutos do mar ainda são a sexta maior exportação da Coreia do Norte e, em discursos recentes, o ditador do país, Kim Jong Un, impulsionou a indústria estatal de frutos do mar a aumentar seu carregamento.
“Peixes são como balas e projéteis,” disse, em 2017, um editorial do Rodong Sinmun, o jornal oficial do Partido dos Trabalhadores da Coreia, de situação. “Barcos de pesca são como navios de guerra, protegendo o povo e a pátria.”
Após as sanções da ONU e com as reservas de moeda estrangeira diminuindo, o governo norte-coreano tentou amparar sua indústria de pesca transformando soldados em pescadores, despachando esses marinheiros maltreinados para águas notoriamente turbulentas. As sanções também intensificaram a falta de gasolina na Coreia do Norte. Investigadores japoneses afirmam que alguns dos barcos pesqueiros que apareceram nas praias do Japão tiveram falha no motor ou simplesmente sofreram com falta de combustível.
Desde 2013, pelo menos cinquenta sobreviventes foram resgatados desses barcos dilapidados, mas, em entrevistas com a polícia japonesa, os homens raramente falam algo senão que eles estavam à deriva e que querem voltar para a Coreia do Norte. Autópsias dos corpos encontrados nesses barcos geralmente indicam que os homens morreram de fome, hipotermia ou desidratação.
Em 2013, os pescadores norte-coreanos ficavam limitados pela capacidade dos seus motores de doze cavalos de potência e normalmente viajavam apenas algumas dezenas de quilômetros adentrando o mar, afirmou um ex-pescador norte-coreano, que desertou para a Coreia do Sul em 2016 e mora hoje em Seul.
“A pressão do governo está maior agora e existem motores de 38 cavalos de potência”, disse o desertor, que pediu para permanecer anônimo, com medo de represálias contra sua família. “As pessoas estão mais desesperadas, então elas vão se distanciando ainda mais do litoral.”
Navios de arrasto chineses ancorados no porto das ilhas Ulleung nas águas sul-coreanas Foto: The Outlaw Ocean Music Project
Entretanto, pesquisadores marinhos afirmam que a pressão do governo norte-coreano não é o único fator.
“É provável que a competição com a pesca de parelha industrial da China esteja desalojando os pescadores da Coreia do Norte, empurrando-os para as águas russas vizinhas”, disse Jungsam Lee, cujo instituto também encontrou centenas de embarcações norte-coreanas pescando ilegalmente em território russo em 2018.
Em 2017, a Guarda Costeira japonesa também relatou ter encontrado mais de 2 mil barcos pesqueiros norte-coreanos pescando, ilegalmente, em suas águas. Em mais de trezentas ocasiões, a Guarda Costeira utilizou canhões de água para forçar esses barcos a saírem do local.
Ao redor do mundo, muitos tipos de peixe e animais marinhos estão desaparecendo em um ritmo insustentável devido às mudanças climáticas, pesca predatória e pesca ilegal de frotas industriais. À medida que esses estoques de peixe diminuem, a competição aumenta e os conflitos em alto-mar entre nações pesqueiras tornam-se mais comuns. Países apreciadores de frutos do mar, como o Japão e a Coreia do Sul, estão sendo gradualmente derrotados por frotas crescentes de Taiwan, do Vietnã e, sobretudo, da China.
Com uma população de mais de 1,38 bilhão de pessoas, a China é o maior consumidor de frutos do mar do mundo e suas pescas globais aumentaram em mais de 20% nos últimos cinco anos. Muitos dos estoques de pesca próximos à costa chinesa despencaram devido à pesca predatória e à industrialização, razão pela qual o governo chinês passou a subsidiar fortemente seus pescadores, que velejam ao redor do mundo atrás de novas regiões.
As frotas pesqueiras da China representam de 50% a 70% de toda lula pescada em alto-mar nos últimos anos, de acordo com uma estimativa do governo chinês. Muitas vezes esses barcos estão pescando ilegalmente em águas nacionais de outros países, conforme análise feita pela C4ADS, uma firma de pesquisas marítimas.
O mar do Japão inclui pedaços de água disputados; os países adjacentes – Rússia, Japão e as duas Coreias – não reconhecem as fronteiras marítimas umas dos outros. A incursão dos chineses nessa região apenas intensificou tensões locais.
Os barcos pesqueiros chineses são famosos por serem agressivos, estão muitas vezes armados e são conhecidos por baterem em competidores ou embarcações de patrulha internacional. A imprensa chinesa costuma retratar esses conflitos marítimos do país com outras nações asiáticas vizinhas como uma continuação dos antigos Três Reinos da China, período em que se travou uma violenta batalha a três por supremacia.
Navios chineses ancorados no porto da ilha Ulleungdo nas águas da Coreia do Sul em 2016 Foto: The Outlaw Ocean Music Project
As tensões entre Seul e Pequim aumentaram em 2016, após uma embarcação chinesa, que pescava ilegalmente em território sul-coreano, afundar uma chalupa da Guarda Costeira da Coreia do Sul. A chalupa estava em águas sul-coreanas e tentava deter um barco pesqueiro chinês que, supostamente, tinha sido flagrado pescando ilegalmente quando um outro barco chinês bateu na traseira dos oficiais da marinha.
De maneira parecida, enquanto trabalhavam nessa investigação ao mar, os repórteres desse artigo filmaram dez desses barcos pesqueiros ilegais da China cruzando águas norte-coreanas. Entretanto, a equipe de reportagem foi forçada a desviar o curso para evitar uma colisão perigosa, após um dos capitães chineses dar uma guinada repentina na direção do barco dos jornalistas, chegando a cerca de dez metros de distância, provavelmente com a intenção de rechaçar o barco.
Vistos à noite e a aproximadamente 160 quilômetros da costa, os barcos chineses para pesca de lula não atendiam a chamadas de rádio e navegavam com os transponders desligados.
As chamadas Lulas Voadoras do Pacífico, espécie que migra o ano todo, desovam em águas próximas à cidade portuária de Busan, a sudeste, ou perto da ilha mais meridional da Coreia do Sul, a Ilha de Jeju. Elas nadam para o norte na primavera antes de retornar ao sul para o local de desova, entre julho e setembro.
Em 2017 e 2018, os barcos chineses ilegais, que costumam ser cerca de dez vezes maiores do que os barcos norte-coreanos, capturaram a mesma quantidade de lula que o Japão e a Coreia do Sul juntos – estimada em 160 mil toneladas, com valor de mais de US$ 440 milhões anuais.
Os pesquisadores marinhos temem um colapso completo dessa colônia de lulas, que tem diminuído em 63% e 78% em águas sul-coreanas e japonesas, respectivamente, desde 2003.
Centenas de barcos chineses ancoram perto da ilha Ulleung, nas águas da Coreia do Sul, em setembro de 2016 Foto: The Outlaw Ocean Music Project
A frota chinesa é o principal culpado dessa queda abrupta porque, ao mirar em águas norte-coreanas, esses barcos industriais estão capturando as lulas antes de elas crescerem o suficiente para procriar, afirmou Park, cientista do Global Fishing Watch.
Dado que as autoridades chinesas não tornam essas licenças de pesca públicas, o Global Fishing Watch declarou que não há como verificar se todos os barcos entrando no território da Coreia do Norte foram autorizados pelo governo chinês. No entanto, a organização confirmou que as embarcações eram de origem chinesa através de várias outras fontes de informação.
Entre essas fontes, estão os transponders e outros tipos de transmissões de rádio, gravações de oficiais da Guarda Costeira da Coreia do Sul – que rotineiramente abordam e inspecionam barcos pesqueiros indo em direção a águas norte-coreanas –, dados mostrando os barcos que saíram de portos chineses ou de águas que são limitadas, restritamente, a embarcações chinesas, gravações indicando o uso de tipos de equipamento ou de barcos claramente chineses e informações de satélite mostrando que os barcos haviam pescado, previamente, em águas chinesas que são policiadas de perto e proibidas a barcos estrangeiros.
Dos mais de vinte barcos pesqueiros testemunhados pela equipe de reportagem indo em direção a águas norte-coreanas, todos eles hasteavam bandeiras chinesas.
“Quando eles chegam, eles tomam conta”, afirmou Kim Byong Su, prefeito da ilha de Ulleungdo, localizada no mar do Leste, a cerca de 120 quilômetros a leste da Península da Coreia. Ulleungdo, uma pequena ponta de terra que pertence a Coreia do Sul, é o porto mais perto dos bancos de pesca norte-coreanos.
Kim declarou que os barcos chineses para pesca de lula dizimaram as duas principais fontes de renda da ilha: o turismo e a pesca. No mercado de Jeodong, próximo do píer, lulas são enfileiradas e dispostas como roupas dobradas, enquanto secam ao sol e viram charque de peixe. Vendedores calculam que o custo do quilo de lula é aproximadamente três vezes o que era menos de cinco anos atrás.
Navios chineses na ilha de Ulleungdo nas águas da Coreia do Sul Foto: The Outlaw Ocean Music Project
A maioria dos homens da ilha com mais de quarenta anos são pescadores de lula, mas um terço deles estão desempregados agora por causa do declínio das reservas, afirmou o prefeito. Uma criatura tão importante para a cultura local desaparecer assim foi um choque para a comunidade, cuja identidade tem sido definida pela pesca de lula há séculos.
Historicamente, a maioria dos restaurantes de Ulleungdo serviam lula frita, seca ou crua como um aperitivo gratuito, mas agora esses pratos estão ausentes em muitos cardápios.
A hostilidade local com a frota chinesa só piorou, disse o prefeito, porque, algumas vezes no ano, quando bate um mau tempo, uma armada de mais de duzentos barcos chineses para pesca de lula chega simultaneamente no porto de Ulleungdo, para esperar a tempestade passar. O prefeito afirmou que não tem poder para mandá-los embora.
Eles descartam óleo, jogam lixo no chão, ligam geradores barulhentos que soltam fumaça a noite toda e, quando saem, arrastam suas âncoras, destruindo os canos de água doce da ilha, ele disse.
“O mundo lá fora precisa saber que está acontecendo aqui,” afirmou Mr. Kim.
*Ian Urbina é um repórter investigativo vencedor do prêmio Pulitzer, anteriormente no The New York Times. Urbina agora é diretor do projeto filantrópico "The Outlaw Ocean", focado em direitos humanos, trabalho e violações ambientais no mar
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